A Consciência do Abuso Sexual e da Manipulação de que foste Alvo
- Marisa Revez Mendes
- 11 de out. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 30 de nov. de 2024
A Consciência de que "o que me aconteceu foi abuso sexual: eu não consenti porque o consentimento é inaplicável face à minha idade - eu fui abusado/a sexualmente, e só agora percebo." é onde todo o processo começa.
Para a maioria dos Sobreviventes de Abuso Sexual na Infância, este evento ocorreu precisamente na infância onde o desenvolvimento cognitivo está ainda longe de traduzir em clareza o que é a sexualidade e em que moldes deve acontecer. Por isso, é comum, ou arriscaria até a dizer, taxativo, que quando o Sobrevivente, já na adolescência ou vida adulta se torna consciente do que aconteceu, a mente precisa de contar uma narrativa de interpretação. Se assumisse que o problema tinha sido o agressor, isso implicaria a pressão de fazer algo acerca, o que é demasiado avassalador, face aos parcos recursos emocionais e mentais; logo a versão menos desesperante é acreditar que foi sua responsabilidade porque consentiu, ou pior ainda, não recusou (sendo que uma ausência de recusa expressa por si só em momento algum é um consentimento). Porém, de acordo com o artigo anterior deste blog (recomendo começares por aí antes de avançares na leitura deste artigo), a autonomia para o consentimento é inexistente, do ponto de vista legislativo, para um menor de 14 anos. Portanto, é pura ilusão que um Sobrevivente assuma para si a responsabilidade do Abuso Sexual na Infância. O único responsável é o autor do crime.

Mas vamos começar por definir o que é Abuso em termos gerais. O Abuso é uma dinâmica ou relacionamento assente na supremacia de um dos intervenientes sobre o outro, estabelecendo uma ligação dominante-dominado, onde o dominante “utiliza” o dominado para sua gratificação e/ou satisfação de necessidades (físicas, sexuais, emocionais, psicológicas, afectivas, financeiras, sociais, profissionais, etc.), que por sua vez são conseguidas através de estratégias físicas, emocionais e psicológicas. Na prática, para conseguir o que pretende, o dominante precisa enfraquecer o dominado (“roubar-lhe” o seu poder pessoal, que pode já ser frágil quer seja pela sua vulnerabilidade física, social, emocional, cognitiva e psicológica), recorrendo à:
- manipulação, ou seja, distorção da realidade por parte do dominante para induzir um pensamento na mente do dominado, sempre associado a uma emoção, que se torna uma crença limitadora e que por sua vez molda as suas decisões, escolhas, comportamentos e expressão, que passam a ir ao encontro das necessidades do dominante; através de mentiras, isolamento, elogios exacerbados/desajustados ou hipersimpatia, culpabilização, promessas irrealistas, contrargumentação distorcida com temas distintos e dispares para gerar confusão mental (Gaslighting), entre as mais comuns - assim, mantém o dominado refém pela culpa, tristeza, dependência, dúvida, incerteza e insegurança;
- violência física e/ou emocional e psicológica (intimidação através de ameaças/coação, controlo possessivo, sarcasmo e humilhação), mantendo o dominado refém através da emoção medo.
Deixo a nota para reflexão de cada um: todos nós “enchemos o peito" para acusar alguém de manipulação mas percebam como este mecanismo está tão intrínseco na nossa programação que acontece tão subtilmente quando estamos, por exemplo, a conhecer alguém com quem temos interesse em nos relacionarmos amorosamente, ou quando queremos ser seleccionados num processo de recrutamento, ou quando queremos ser aceites entre pares, etc, em que inconscientemente dizemos ou assumimos escolhas que vão subtilmente contra a nossa autenticidade mas ao encontro daquilo que achamos instintivamente que o outro deseja ouvir, para que lhe criar um pensamento acerca de nós que lhe gera desejo… sem querer já estamos a manipular (se estivermos focados apenas no bem maior das nossas próprias necessidades) ou pelo menos a persuadí-lo (se considerarmos que a outra pessoa também terá benefícios na relação connosco). Seja como for, todos nós temos a capacidade de exercer influência sobre alguém, podendo ser apenas em próprio benefício e/ou para benefício do outro.
Falando especificamente de Abuso Sexual… mantém-se a premissa de haver uma dinâmica dominado-dominante, entre um menor e um adulto, ou entre criança e um adolescente, ou entre duas crianças sendo a criança dominante mais velha com uma diferença de pelo menos 5 anos de idade e por isso com diferenças no desenvolvimento cognitivo face ao menor dominado.
Nessa interação, o dominante exerce poder e controlo da vítima através das estratégias de manipulação descritas nos parágrafos anteriores, para a tentativa ou existência efetiva de contactos e comportamentos sexuais entre eles ou com terceira pessoa para sua gratificação sexual e psicológica/emocional/financeira (no caso de lenocídio). No contexto do Abuso Sexual, existe um termo específico para a estratégia de manipulação denominada de Grooming, sendo a tática manipulava primordial nos casos de Abuso Sexual para engajar, numa base de conexão emocional e de confiança, a criança alvo, a família e/ou comunidade subjacente, para a prática de abuso sexual com a menor resistência ou consciência da vítima e elos de suporte.
Consideram-se contactos e comportamentos sexuais desde o mais explícito, o coito vaginal/anal/oral (crime de violação), a qualquer contacto de intenção sexual por parte do agressor/dominante, explicito ou subtil, com ou sem contacto físico, efectivo ou na forma tentada (toques, carícias, beijos indesejados e/ou inadequados, verbalização, mensagens, exposição e/ou participação em pornografia, fotografar ou filmar, atos de exibicionismo). Aos actos sexuais mais subtis, é comum o agressor sexual, na sua estratégia de Grooming ao menor, camuflar a sua real intenção com falsos argumentos tais como “eu estou a fazer isto porque és especial”, “é uma brincadeira só nossa” ou “vou cuidar de ti, dar-te carinho/afecto”, eludindo assim o menor que, pela sua inocência e no caso de nunca ter sido instruído em contrário, acredita e confia. Também é usual recorrer a presentes e gratificação ao menor para o seduzir nesta “teia” relacional.
Importa distinguir que nem todos os agressores sexuais são pedófilos, e nem todos os pedófilos diagnosticados abusaram de menores. A Perturbação Pedofílica (à semelhança da perturbação de exibicionismo, por exemplo) faz parte das perturbações enquadradas no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5). Por isso, para um agressor sexual ser considerado pedófilo, terá de passar por uma avaliação e diagnóstico psiquiátrico. Muitos agressores sexuais não são pedófilos, são autores de crime de oportunidade onde por vezes a par da gratificação sexual como principal motivação está também a necessidade de poder e controlo como vector de auto estima e satisfação pessoal. Tendencialmente são perfis com elevada imaturidade emocional e grau de carência afectiva, ausência de culpa podendo até responsabilizar a vitima, sendo o mais comum a negação e a tentativa de descredibilização da mesma, sentindo por vezes o menor como um direito de posse. Já a vitima tendencialmente é uma criança introvertida, obediente, com dificuldade em questionar ou resistir a comportamentos alheios mesmo que os sinta como desconfortáveis, numa atitude passiva e permissiva, com padrões de vinculação instáveis e escasso afecto fisico e emocional por parte dos responsáveis.
Os Abusos Sexuais podem acontecer em dois contextos principais: contexto Intrafamiliar e contexto Extrafamiliar.
No contexto Intrafamiliar os crimes são praticados por pessoas que tenham uma relação familiar com a criança ou jovem: pai, mãe, padrasto, madrasta, avós, tios/as, padrinho, madrinha, ou pelos pares (meios) irmãos ou primos mais velhos, etc. Pelo facto do agressor ser um elemento conhecido em quem a vítima confia, e representa muitas vezes até uma figura de autoridade e/ou respeito, há menor probabilidade da vítima resistir e ocorrer violência física, pelo que os danos físicos são inexistentes, dificultando a detecção do crime que assim pode ser perpetuado por um período de tempo mais longo. A vítima tende a sentir ambivalência de sentimentos face ao agressor, medo de consequências e desintegração familiar, insegurança e dúvida relativamente à normalidade dos atos e por consequência, culpa porque interpreta que colaborou ou seduzido o agressor/a, e por estes motivos tende a guardar segredo. A ocultação também pode ser influenciada por ameaças do agressor à integridade da vítima e pelo facto de continuar a fazer parte da vida da vítima, consolidando o seu poder sobre ela de forma continuada. A particularidade do contexto Intrafamiliar é que mesmo nos casos em que a revelação acontece, seja logo após ou anos mais tarde, há uma tendência para a família adoptar uma atitude passiva, por vezes até duvidando da veracidade dos factos ou sugestionando acerca da possibilidade de incorrecta interpretação da vítima face aos actos do agressor/a, acomodando-se à situação e “sacrificando” a vítima para manter a família unida, numa resistência à mudança e medo de desintegração familiar, pedindo à vitima que mantenha segredo pela vergonha alheia.
Já no contexto Extrafamiliar, os crimes costumam ser praticados por pessoas bem cotadas na sua comunidade com elos de confiança e influencia bem estabelecidos, podendo ser: professor/a, ama, vizinho/a, tutor/a, treinador/a de actividade extra, prestadores de serviços, elementos de instituições que o menor frequente, amigos da família, colegas de escola ou de atividades extra, etc. Nestes casos, quando a revelação acontece, é mais comum ver a família a atuar como forma de resolução e proteção da vítima face ao agressor/a, do que no contexto Intrafamiliar.
Perante os atos de abuso sexual e na sensação de desconforto associado, a vítima recorre à estratégia de evitamento do agressor/a, e no caso de impossibilidade de fuga, acede às suas investidas sem qualquer resistência, colaborando até, dizendo ao agressor/a o que ele/a quer ouvir, na expectativa de que “acabe o mais rápido possível”, sem a/o aborrecer para minimizar as consequências que daí possam advir. Portanto, na impossibilidade de fuga, perante o desespero e a impotência, a vítima adopta as estratégias necessárias para sobreviver àqueles momentos fazendo com que durem o menor tempo possível, com o menor sofrimento possível.
Estamos juntos, neste grande Círculo de Sobreviventes,

Bibliografia consultada:
Agulhas, R & Anciães, A. (2022). Grande Livro sobre a Violência Sexual - Compreensão, Prevenção, Avaliação e Intervenção. Lisboa: Edições Sílabo.
Manual CARE : apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual. Lisboa : APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (2019).
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